Archive for dezembro, 2012

Bem vindos ao décimo quarto B’aktun

Hoje começa o décimo quarto B’aktun. Mas sem sequer saber o que a última palavra da sentença anterior quer dizer, milhares andam por aí falando em fim do mundo. Alguns tentam se aproveitar da ignorância alheia pra ganhar uns tostões vendendo blablablás esotéricos supostamente astrológicos e coisas do gênero, enquanto outros de fato ganharam milhões de tostões fazendo e vendendo filmes onde o planeta catastroficamente colapsa, fisicamente falando.

Tsunamis, explosões, implosões, guerras, terremotos, maremotos e coisas do tipo, que continuamente e incansavelmente fascinam os fãs de hollywood.

Outros gastam tempo ativamente combatendo os supostos charlatões, tentando mostrar como a ciência ocidental é desenvolvida e o resto é gente primitiva e superstição idiota. Afinal, somos um povo avançado, científico, seguro de si. Sabemos que o mundo não vai acabar, não tem nem o que pensar a respeito. Então é lógico que profecia de fim de mundo é besteira e é melhor você cuidar das suas finanças e não gastar tudo em férias extravagantes.

Mas a maioria apenas ouve falar duma tal de profecia do fim do mundo (mais uma), de uns tais maias. E como o melhor remédio contra a ignorância é o bom humor, tiram da história boas piadas.

Então bota Tim pra tocar numa relax, numa tranquila, numa boa. Chama os amigos e as amigas, pega uma cerveja, prepara um churrasquinho e bora festejar, porque se o mundo ta acabando, por sorte é no verão, numa sexta-feira quase véspera de natal. Não podia ser um final mais feliz, não é mesmo?

Uma mentira corre metade do mundo antes da verdade ter chance de vestir as calças ~ Winston Churchill

Os mayas foram uma das mais avançadas civilizações da América Pré-Colombiana, e durante mais de dois mil anos habitaram as terras que hoje formam parte do México, na península de Yucatán, e também da Guatemala, Honduras e El Salvador. Chegaram aos milhões de habitantes em dezenas, talvez centenas de cidades.

O desaparecimento dessa cultura ao longo do tempo, principalmente entre o ano 1000 e 1500 de nossa contagem atual – o calendário gregoriano – ainda é um mistério não resolvido. Muitos defendem que foi o uso inadequado dos recursos naturais que teria levado ao desaparecimento e colapso dos mayas, mas há entre os estudiosos do assunto até os que contestem a idéia de que tenha havido qualquer colapso.

De qualquer forma, ainda haviam mayas vivos em muitas partes quando da chegada dos Europeus, e o choque que se seguiu foi brutal. Os colonizadores que chegaram na América em 1492 vieram transportados diretamente da Idade Média, onde praticavam caça às bruxas, execuções em praças públicas e viviam sob condições parcas de higiene e desenvolvimento material e tecnológico, apesar do feito incrível de atravessarem o oceano, vivos. Consideraram então os mayas e seus estilos de vida como coisas do demônio. Assim, ativamente promoveram um genocídio digno das páginas negras da história da humanidade, escritas a ferro, fogo, pólvora e sangue. Um trauma psíquico e cultural que não foi exclusivo com relação aos mayas, mas que atingiu todos os milhões de habitantes das Américas, que segundo os estudos recentes eram em maior número do que os habitantes da Europa. Grande parte morreu também devido às doenças trazidas pelos Europeus, pras quais os povos ameríndios tinham pouca, ou nenhuma imunidade. Pra alguns, não fosse esse fato, os Europeus não teriam conseguido colonizar o “novo” continente, mesmo com auxílio da pólvora como superioridade tecnológica de combate.

No que tange o massacre dos mayas, um exemplo famoso é o do Bispo Católico Diego de Landa, que ativamente comandou assassinatos e destruições impressionantes. Em 12 de Julho de 1562, Landa comandou uma cerimônia na qual foram queimados pelo menos 40 códices mayas e mais de 20 mil imagens sagradas. O nível de abuso físico e torturas dos inquisidores comandados por Landa era tão escabroso que até mesmo dentro da Igreja teria havido discórdia e oposição contra ele.

O resultado histórico deste massacre generalizado dos povos nativos da América, de norte a sul, que durou muitas décadas, é que muito do que se fala sobre os mayas (e sobre índio) hoje é especulação. Principalmente porque a imensa maioria dessa cultura foi literalmente dizimada e destruída pela inquisição. Mas também porque o preconceito foi espalhado e se enraizou na cultura eurocêntrica que hoje domina quase todo o continente. Provas deste fato é que continuamos ensinando história do Brasil através do olhar ultra enviesado do colonizador, e não do colonizado; e que “índio” nesse país continua sendo o grande alvo de racismo e exclusão, com práticas inquistórias, escravistas e genocidas ainda em vigor em algumas partes. Na verdade, a maioria dos brasileiros sequer consegue enumerar mais de três ou quatro nomes de tribos indígenas que habitam o país, e sequer se dão conta do fato de que o próprio termo “índio” se origina do equívoco do colonizador, que pensava estar na Índia quando aqui pisou. E há muita criança por aí que acha que índio não existe mais, só em filme…

Do ponto de vista arqueológico e antropológico, a perda de conhecimentos sobre os mayas são incalculáveis. Ainda assim, pelo menos dois séculos de estudos científicos sistemáticos e sérios, com colaborações internacionais, levaram a algumas decobertas fascinantes. Pioneiros no estudo da civilização maya, como por exemplo John Lloyd Stephens, Teobert Maler, Sylvanus G. Morley e Tatiana Proskouriakoff, entre muitos outros, conseguiram decodificar grande parte dos hieroglifos mayas. Mesmo com apenas fragmentos do que sobrou após a destruição promovida pelos povos auto-proclamados de “desenvolvidos”. E também pelo próprio desgaste do tempo, pois os mayas sobreviventes aprenderam rápido que com os recém chegados não havia muita chance de relações humanas decentes, e se esconderam nas florestas e esconderam seus bens e conhecimentos mais preciosos.

Se esconder na floresta… Pode parecer bobo numa primeira lida. Isto porque comumente aprendemos que nas américas viviam “apenas uns poucos” índios. E também porque a maioria de nós não tem qualquer experiência do que de fato é uma floresta, e da dificuldade de transitar por uma. A retirada foi tão intensa e bem feita, e a floresta é tão grande e cerrada, que muitas das centenas de ruínas de construções mayas, hoje sítios arqueológicos, foram descobertas apenas séculos depois de considerada terminada a colonização das Américas, quando os países aqui já eram “independentes”. E possibilidade há para que haja ainda mais para ser encontrado.

Um excelente exemplo de tesouro perdido são as ruínas de Calakmul, uma das maiores e mais bem desenvolvidas cidades mayas que se conhece até hoje. Foi descoberta apenas em 1932, vista de um avião que sobrevoava a região e cujos tripulantes estranharam dois picos muito altos no meio da floresta. Foram necessárias expedições terrestres para que pudessem alcançar o local e descobrir que a floresta havia literalmente engolido duas pirâmides que ultrapassam os 40 metros de altura, e mais algumas dúzias de construções menores e centenas de estelas – lápides de pedra com inscrições hieroglíficas. O nome Calakmul, dado pelos exploradores, em maya significa “montes adjacentes”. Alguns estudos foram conduzidos ainda nos anos 30, mas somente nos anos 80 o sítio voltou a ser estudado sistematicamente, tendo sido aberto a visitas turísticas apenas em 1994, como resultado dos esforços do INAH – o Instituto Nacional de Antropologia e História do México.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Ali perto há outra, Balamku, bem menor e que foi descoberta e patrimoniada pelo INAH apenas nos anos 90. Sua descoberta aconteceu após uma denúncia anônima de que saques estariam acontecendo em uma ruína da região (reverberando o padrão histórico sobre o que se faz com a cultura maya). Um arqueólogo foi então enviado e se deparou com algumas construções, uma delas contendo algumas esculturas das mais bem preservadas da região, que séculos depois ainda conservava os pigmentos vermelhos e azuis originais, que decoram figuras sagradas pros mayas, como o jaguar.

Durante pelo menos 200 anos, houve então uma redescoberta e ressignificação arqueológica e antropológica dos conhecimentos obtidos pelos mayas, através da leitura de sua própria linguagem, agora parcialmente decodificada. E parte destes estudos revelou que era uma civilização com alguns conhecimentos altamente desenvolvidos, em especial a matemática e a astronomia. Algumas construções mayas encontram-se em posições incrivelmente precisas em relação ao norte, como a Estrutura VIII de Calakmul, que está alinhada com “erro” de apenas 8 graus a leste do norte magnético. Várias técnicas foram desenvolvidas para rastrear e mapear a posição dos astros nos céus ao longo de muitos anos, usando a sombra das construções e alinhamentos entre feixes de luz entre pilares paralelos, por exemplo, para identificar com precisão datas únicas como os Solstícios de inverno e verão.

Assim, de maneira não totalmente compreendida, os mayas calcularam o valor do ciclo sinódico de vênus em 584 dias, assombrosamente preciso. De acordo com a mais alta tecnologia do seculo XXI, o resultado é de 583,92 (erro de 0,08 dias, ou cerca de duas horas, ou 0,01%). Calcularam o ciclo de Marte em 780 dias, espantosamente certeiro, pois hoje calculamos em 779,94 dias (erro de 0,06 dias) e calcularam o lunar em 29,5 dias, sendo o cálculo atual de 29,53059! Eles inventaram ainda uma sofisticada grafia para os números, compostos de pontos e traços, e também o conceito matemático zero, quiçá antes dos árabes, que foram quem ensinaram aos europeus como se faz matemática pra valer.

Estes acertos numéricos não são meras curiosidades, mas são frutos de práticas genuinamente científicas (observação, repetição, inferência, refutação, comprovação etc) e estão relacionados com a construção e com o desenvolvimento da agricultura. Esta foi um dos desenvolvimentos centrais para o apogeu dos mayas, e pode também ter sido crucial em seu declínio, já que alguns estudos indicam que possa ter sido o uso exagerado dos recursos naturais que teriam levado muitas cidades a catástrofes ecológicas e sociais.

O acompanhamento da trajetória dos astros no céu, feito continuamente ao longo de séculos, permitiu aos mayas desenvolverem também calendários fascinantes e estrondosamente precisos. Foi apenas nos idos de 1950, com o descobrimento do Códice de Dresde e com o trabalho de Yuri Knórozov que muito desse nosso conhecimento atual sobre os calendários mayas avançaram, incluindo a identificação de, até agora, pelo menos 800 glifos do alfabeto maya.

Os mayas contavam o tempo em ciclos, e possuíam inúmeros calendários utilizados para finalidades distintas. O mais famoso, também conhecido como roda calendárica, conta larga, ou simplesmente “calendário maia”, é um sofisticado mecanismo que relaciona distintas contagens. Na conta larga, a unidade básica é o dia, ou k’in, que são agrupados em períodos de 20 dias, chamado winal. Um tun corresponde a 18 winals. Há também um k’atun, que conta 20 tunoob’, que é um ano de 360 dias (ao qual se adiciona um período especial de 5 dias, o wayhaab’, formando 365 dias). Tem também o b’aktun, que corresponde a 400 tunoob’s, ou aproximadamente 400 anos (mais precisamente 394,26 anos). Estes ciclos teriam começado em 3114 AC, em uma das cíclicas e sucessivas “criações do mundo”.

Uma imagem do Calendário Maya (a maioria dos resultados de uma busca no google é do calendário Azteca, indicando quanta confusão há sobre o assunto)

É um pouco complicado, mas de certa forma guarda semelhança com nossa contagem, que tem o dia como unidade básica, mas que depois é agrupado em ciclos de 7 (semana), de aproximadamente 30 (mês), de aproximadamente 365 (ano), e depois os séculos e milênios, que dão ênfase aos múltiplos de 10 como tendo algum tipo de significação especial. Mas para os mayas, o especial estava nos ciclos, que possuíam diversos significados, com ênfase nas mudanças periódicas. Assim, os calendários mayas já nasceram focados nas mudanças e na diversidade das possibilidades de contagem do tempo, enquanto o calendário gregoriano nasceu com o nome de Calendário Gregorianum Perpetuum, se prpondo a ser a melhor, mais precisa e definitiva maneira de contagem do tempo, pra sempre.

Dentre os vários calendários mayas, era o Haab’ o utilizado para contar o ano de cerca de 365 dias relacionados ao sol. Outro era o calendário mágico, ou ritual, o Tzolk’in, que determinava padrões da vida cerimonial. O Tzolk’in foi construído combinando 13 coeficientes para cada um dos 20 nomes que existiam, neste calendário, para os dias. O resultado é uma conta de 13 x 20 = 260 dias, que aproxima o período de gestação humana, e na qual não há repetição de um único dia. Para cada um dos 20 dias principais haviam glifos que correspondiam a distintas entidades, divindades, forças da natureza ou animais, aos quais era combinada a conta de 13 números. A roda calendárica combina as 260 permutações do Tzolk’in com as 365 do Haab’. Os mayas sabiam que uma dada combinação do Tzolk’in com o Haab’ só voltaria a se repetir após um ciclo de 52 anos.

Além destes, haviam outros ciclos, como o pouco compreendido ciclo de 819 dias, relacionado aos números primos 7 e 13, que aparece em várias inscrições remanescentes ao massacre da cultura maya, e outros ciclos maiores como o piktun, equivalente a 8000 tunoob’s (ou cerca de 8 mil anos), o kalab’tun que é igual a 160.000 tunoob’s ou 20 piktuns, o k’inchiltun, que equivale a 3 milhões e 200 mil tunoob’s ou 20 kalab’tuns, e o ‘alautun, que correspondia a cerca de 64 milhões de anos.

Portanto, é óbvio que não há fim no calendário maya. Na verdade, os mayas tinham calendários que iam milhões de anos a frente de sua época, e milhões de anos a frente desta época em que estamos.

Mas então, o que as interpretações errôneas e catastróficas tem a nos dizer?

Estas histórias não surgiram dos mayas, mas de nossa própria cultura. Em um primeiro momento, nos revelam nosso etnocentrismo e o preconceito que ronda os conhecimentos adquiridos por outros povos, em outras épocas e lugares. Como não é incomum na antropologia, as interpretações revelam mais sobre o observador do que sobre o observado. As idéias de fim de mundo não são novas neste 21 de dezembro de 2012, e já rondaram também, por exemplo, o ano 2000 e o ano 1000, dada a nossa tendência a atribuir significado aos múltiplos de dez, ou mais especialmente aos milênios (chamado de milenarismo). Quase sempre estas datas são interpretadas como catástrofes físicas, ou então relacionadas ao juizo final Católico, onde Deus finalmente decidiria quais almas seriam salvas e quais não. Entre os não religiosos, é a visão de catástrofe física que parece predominar, e as raízes profundas disto podem estar na filosofia que atualmente vigora em nossa cultura científica: o materialismo.

Fim do mundo no ano 2000

Esta visão propõe que a realidade é o físico, que está fora de nossa mente, pode ser observado, medido e (supostamente) estudado objetivamente. Para o materialismo, os fenômenos mentais são epifenômenos da matéria, a consciência é um acaso que brota da atividade de bilhões de células cerebrais e espiritualidade é bobagem, superstição infantil ou ignorância. O materialismo nasceu na mesma época que a Ciência como hoje a conhecemos, fruto do pensamento e trabalho de gênios como Isaac Newton, René Descartes, Galileo Galilei, entre outros. É daí que vem o outro nome do materialismo científico, também conhecido como paradigma newtoniano-cartesiano, dada a influência intelectual e filosófica exercida por estes dois cientistas.

Assim, após séculos debruçados sobre o mundo material, compreendendo e descrevendo a trajetória dos planetas com fórmulas matemáticas, desvendando a composição química da natureza, a estrutura do átomo e suas subpartículas, a mente científica habituou-se a pensar quase que exclusivamente em termos da matéria. Não é de se surpreender, portanto, que quando se depare com algum mito “primitivo” sobre “fim do mundo”, imediatamente pense em catástrofes físicas e detruição do planeta.

Mas para os mayas, os ciclos do tempo indicavam também momentos propícios para rituais mágicos, religiosos ou místicos, relacionados a várias divindades. Provavelmente corresponde ao que hoje chamamos aspectos arquetípicos da psique, como colocado por pensadores como Jung e Campbell. Durante alguns desses rituais,  como o famoso e onipresente “juego de pelota”, a morte acontecia de fato fisicamente, sendo o perdedor decapitado, como parte do processo ritualístico de veneração das divindades e de um culto à fertilidade. Mas mais frequentemente, os rituais ameríndios estão ligados aos fenômenos espirituais sem a necessidade do sacrifício físico. É possível e provável que para os mayas não fosse totalmente diferente. Evidências de rituais mágico-religiosos e espirituais incluem as estátuas-cogumelo de Kaminaljuyu. Estas estátuas sugerem que cogumelos psicodélicos tenham sido usados e até mesmo considerados divindades pelos maya, bem como o eram por outras culturas e povos da região. Como por exemplo os mazatecas, que até hoje utilizam os “niños santos” em rituais na serra do estado de Oaxaca. Cogumelos do gênero Psilocybe, que contém centenas de espécies psicoativas, crescem em abundância em toda a península de Yucatan e na serra Oaxaqueña. São absolutamente não tóxicos, e propiciam uma experiência mística que pode ser profunda e extremamente transformadora, caso seja feito de maneira adequada, em local apropriado e com um guia experiente, capaz de levar o participante a colher frutos positivos da sua jornada interior. Assim, a morte e o fim que eram professados relacionados a estes tipos de rituais não eram necessariamente relativos a aspectos físicos, mas psíquicos e espirituais.

De qualquer forma, a posição dos astros no céu era relacionada com inúmeros mitos, deuses e demônios. Estas divindades representavam forças psíquicas e arquetípicas, e o acompanhamento dos astros no céu serviria então para mapear mudanças na psique, ou na consciência, de acordo com a carga energética dos deuses envolvidos em cada época e ciclo. Para eles, os ciclos de contagem do tempo indicavam as mudanças nas forças arquetípicas predominantes, e então tinham implicação direta na vida e nas sociedades, tendo sido considerados conhecimentos sagrados, venerados por milênios.

De acordo com esta visão arquetípica da psicologia profunda e da mitologia, o novo b’aktun do calendário maya marcaria então uma fase de mudança na psique da humanidade. Mas assim como a primavera não começa subitamente, as mudanças não acontecerão de imediato, nem acontecerão apenas após a data simbólica, muito menos serão apenas de ordem física. Trataria-se então de um período de transição psicológica e cultural, e um olhar abrangente pra situação planetária atual ilumina a questão e sugere que sim, a tal profecia maya pode ter sentido.

Nunca antes existiu neste planeta uma situação assim. Somos hoje mais de 7 bilhões de humanos, e seremos muito mais em intervalos cada vez menores, pois o crescimento é exponencial. E estamos vivendo como se fôssemos algum tipo de praga que consome tudo e desperdiça quantidades assombrosas, até mesmo daquilo que vai garantir a sobrevivência futura. E sem dar tempo e condições para que os recursos se regenerem. Estamos exagerando no uso da energia fóssil, na mineração e na construção. Estamos erguendo cidades de puro concreto num ritmo nunca antes visto, e partindo pra todos os ecosistemas com ganância de quem ainda quer mais. Esta ganância transparece em nossos sistemas políticos, que vão se esgotando em sua capacidade de gerenciar e representar as vontades e anseios da população em várias partes do planeta. Então as condições sociais se deterioram e as revoltas vão se acumulando e fortalecendo, acontecendo com mais e mais frequência, deixando a todos inseguros e amedrontados. Incluindo os políticos, que se escondem atrás do aparato policial e bélico, e propõem soluções frequentemente fundamentadas na cultura da violência.

banksy, cartão de natal 2012

O medo nos afasta e manifestações de intolerância contra o outro, o diferente, se intensificam e se reproduzem, criando mais fronteiras, mais muros, mais cadeias, mais aparatos de segurança, mais genocídio, ecocídio e etnocídio. Isto diz respeito com toda força ao que acontece com as culturas chamada indígenas, em todo o mundo, que continuam a sofrer com o trauma que se originou em 1492.

Como bem ensinou Jiddhu Krishnamurti, o mundo que fazemos é apenas um reflexo do nosso mundo interior, e não o contrário. Ou seja, não estamos confusos e amedrontados porque o mundo está uma bagunça. O mundo é que está uma bagunça porque nós assim o criamos, porque estamos inseguros e amedrontados.

Assim sendo, a tal profecia maya poderia estar nos dizendo que a hora é propícia para evoluir. Como já colocaram inúmeros místicos, cada qual a sua maneira, crise é um momento de perigo e oportunidade, ao mesmo tempo. A crise pode ser o momento para semearmos a mudança e colhermos crescimento, mas também pode trazer perigo de estagnação e retrocesso. Esse duelo brutal de forças opostas está presente de forma marcante no dia a dia de cada um de nós. Basta olhar em volta, com atenção, e tudo pode ser visto como perigo, ou como oportunidade.

Desse ponto de vista, a profecia maya poderia estar a dizer e calcular que nesta época estaríamos passando por mudanças psíquicas profundas. Mas não apenas nesta época, já que os eventos no tempo eram percebidos, pelos maya, como cíclicos. De fato, sequer há numerosas escrituras maya que digam algo de especialmente relevante sobre esta transição em particular, que chamamos de 2012. Há o monumento VI de Tortuguero, que descreve brevemente o que ocorreria ao final do 13 b’aktun, quando descenderá um conjunto de divindades chamados de B’alu’n Yookte’ K’uh, ou “dos nove pilares” (ou nove suportes). Outra referência específica a esta transição está no grupo de Palenque, e se refere a eventos similares ao da Fecha Era, ou ano zero, sugerindo eventos de grande magnitude. Seja como for, é certeza que trata-se de uma transição de b’aktuns, mas se algo de suprema importância e único vai acontecer, ninguém sabe.

Mas podemos, ao menos, não apenas contextualizar a crise atual pela qual passamos de acordo com a mudança de b’aktun, mas olhar pra trás e resignificar o calendário maya de acordo com outras transições de b’aktun anteriores. Os resultados desse exercício mental são impressionantes. Se um b’aktun tem quase 4 séculos, significa que estamos neste b’aktun desde cerca de 1600 (a conta pelo calendário gregoriano seria 2012 – 394 = 1618, em algum ponto antes de 21 de dezembro, já que o correto é 394,26). A Obra prima de Nicolaus Copernicus foi publicada em 1543 e revelou que a Terra gira em torno do Sol. A obra de Galileo Galilei chacoalhou o mundo católico ao redor de 1615, a obra de Descartes nasceu ao redor de 1640 e as “leis de Newton” foram publicadas por volta de 1680. Assim, foi no início do décimo terceiro e atual b’aktun que aconteceu a grande e conflituosa transição que originou a Ciência, mudou o mundo e nossa maneira de vê-lo. E veio junto o racha traumático que separa, até hoje, a ciência da maioria das religiões.

Ou seja, o b’aktun que está acabando hoje é aquele onde ocorreram os traumas da colonização do mundo por parte das culturas de origem Européia, incluindo a dizimação do povo maya, que pode ter sido prevista pelos próprios mayas. No livro Chilam Balam, de Maní, há uma profecia sobre a chegada dos conquistadores espanhóis, que diz algo próximo de “ocorrerá o itzá e rodará o Tancah“, que descreveria os estrangeiros como “hóspedes barbados que vem do oriente e em suas palavras não dizem verdades”. No décimo terceiro b’aktun aconteceu, portanto, não apenas o genocídio contra os próprios criadores de tal conhecimento, mas também o genocídio de inúmeras culturas e uma perseguição brutal contra tudo e todos que não se conformassem a uma visão específica de mundo.

Mas neste b’aktun a humanidade também mudou completamente de estilo de vida, criou a tecnologia que temos hoje e alterou drasticamente suas relações com o planeta e consigo mesma. Como resultado, também agigantaram-se as discrepâncias entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, testemunhou-se a escravidão de povos inteiros, o racismo, o nazismo, o fascismo, duas guerras mundiais, bombas atômicas, o terrorismo… Em suma, um b’aktun muito conturbado, conflituoso, paradoxal, antagônico, dual. Caracterizado por muito sofrimento físico, psíquico e espiritual.

Portanto, foi neste b’aktun, o décimo terceiro, que simbolicamente se encerra hoje, que inventamos o materialismo, com todas suas contradições. O materialismo nos deu de presente a bomba e o ipad, a metralhadora e o antibiótico, o GPS que guia o motorista mas também o míssil, nos deu a fábrica, mas nos deixou a poluição. O materialismo nos forneceu uma expectativa de vida sem precedentes, mas também nos trouxe a uma situação de superpopulação sem solução à vista.

Assim sendo, o que está em jogo não é a integridade física do planeta, mas nossa consciência. E não se trata de um jogo rápido. Se um b’aktun correponde a quase 400 anos, para entender do que falavam os mayas seria extremamente simplista e ingênuo buscar respostas em um único dia. Então, não espere que a profecia maya se concretize, ou seja refutada, com base em eventos pontuais, seja a eleição de um presidente aqui ou ali, o fim de uma guerra, o começo de outra, ou alguma descoberta científica chocante. Entretanto, o processo que começa a se desenrolar certamente envolve alguns destes eventos. Como no final do décimo segundo b’aktun foi descobeto que girávamos em torno do sol, no final do décimo terceiro descobriram o Bóson de Higgs…

Se acontecimentos realmente revolucionários aconteceram justamente na última transição de b’aktuns (e pode-se, obviamente, estender este estudo histórico para todas as transições anteriores), pode ser que de fato algo de relevante, bem relevante, esteja por trás dos conhecimentos do calendário maya. Quanto mais se escava informações a respeito dos b’aktuns precedentes, mais incoerente parece a explicação de que seja mera coincidência, totalmente desprovida de significado.

Não seria, portanto, muito alucinante pensar que no novo b’aktun, ganharíamos de presente algo completamente novo e tão transformador quanto foi a invenção da ciência nos idos dos 1600 gregorianos. E que também haverá, como houve à época, enorme resistência.

“O dia em que a ciência começar a estudar fenômenos não-físicos, ela fará mais progresso em uma década do que em todos os séculos de sua existência prévia” Nikola Tesla

Que tal então contemplarmos uma nova ciência, com uma nova visão de mundo? Será que faz sentido interpretarmos esta época inspirados nos maya, como significando uma revolução da consciência? Como o surgimento de uma percepção científica de que há mais entre o Céu e a Terra do que prega e delimita a filosofia materialista?

Algumas ocorrências indicam que sim, que pode ser disto que se trate a profecia maya. Os avanços a solapar o materialismo, a deslocar a matéria como a pedra fundamental da realidade, vieram primeiro com a física quântica. Depois, descobrimos que 90% do universo é composto de algo que não é matéria, que ironicamente nomearam de “matéria escura”. E agora a neurociência, a psicologia e a psiquiatria começam a passar por um processo semelhante ao que passou a física. Uma total ressignificação de conceitos e pressupostos, com mais e mais experimentos mostrando fascinantes resultados sobre a função do cérebro em estados de consciência distintos do comum. Isto inclúi experimentos com meditações, com transes mediúnicos, yoga e também com os psicodélicos, ou enteógenos.

Um bom marco sócio-cultural diretamente relacionado a essa transformação é o início do fim da guerra contra as drogas, marcado pela recente legalização da maconha em dois estados dos EUA. A guerra contra as drogas é nada mais que o alongamento psíquico da inquisição do século XV e XVI para o século XXI gregoriano. Uma inadequada prorrogação da luta e perseguição aos estados de consciência por um b’aktun inteiro! No fundo, não é uma guerra contra substâncias nocivas. É uma guerra contra a consciência. Contra a(s) possibilidade(s) de que a consciência seja algo maior, mais abrangente e misterioso do que a filosofia materialista supõe e é capaz de explicar. É uma guerra cultural contra estados não ordinários de consciência e seus métodos de indução mais confiáveis. Métodos estes que foram centrais para os mayas e para inúmeros outros povos, e que podem estar envolvidos diretamente na própria origem da religião como empreitada humana.

Talvez então a característica filosófica mais marcante do b’aktun que se encerra tenha sido o aprisionamento, tanto da ciência quanto da religião, em apenas um estado de consciência. Paradoxalmente, ao se aprisionarem no mesmo estado, se separaram radicalmente uma da outra. E possivelmente então o que nos aguarda seja a gradual e revolucionária liberação do ser humano para outros reinos, infernais e astrais, da psique. Esta jornada, como bem mostram os resultados pioneiros da psicologia surgida das explorações dos anos 60, incluindo o uso ritual, terapêutico, responsável e científico dos psicodélicos, pode significar o reencontro da ciência com a espiritualidade. Então, a oportunidade de sanar as feridas das guerras e genocídios deste b’aktun estará ao nosso alcance, como já começam a demonstrar pesquisas pioneiras com os psicodélicos.

“Não há conflito entre ciência genuína e religião autêntica. Se há, é porque estamos falando de pseudociência e falsas religiões” Ken Wilber

Principais Referências:

INAH, ruínas e sítios arqueológicos no México, Museo Nacional de Antropologia e o livro “Lo Essencial del Calendario Maya – los señores del tiempo” supervisionado pelo arqueólogo Carlos Pallán Gayol.

Comments (5)