No início, nada existia.
Apenas escuridão e silêncio.
Só existiam os criadores.
O Coração do Céu e o Coração da Terra.
De repente surgiu a aurora e a claridade se fez.
Apareceu a Terra com suas montanhas e árvores.
Depois, os animais foram criados, todos os tipos de animais.
E eles deveriam venerar os deuses, mas eles eram incapazes de falar.
Foi então que os primeiros seres humanos foram criados.
E eles foram feitos de barro.
Mas essas pessoas não ficaram boas.
Elas não tinham sentimentos, nem capacidade de entender.
E não louvavam os deuses.
Não tinham forças e não podiam se mover.
Então os deuses destruíram essas pessoas com uma enorme tempestade.
Na segunda tentativa, os deuses criaram homens de madeira.
Da madeira entalharam suas faces. Da madeira fizeram seus corpos.
E pareciam com seres humanos.
Eles se reproduziram e povoaram a Terra com seus filhos e filhas.
Mas os seres de madeira seguiam sem rumo.
Eles cortavam as árvores, matavam animais e destruíam o meio ambiente.
Eles não possuíam alma ou compreensão.
Eram destrutivos e não louvavam os deuses.
Então, a morte foi lançada sobre eles.
Choveu o dia todo e a noite toda.
E eles foram exterminados por uma enorme enchente.
Na terceira tentativa, o Coração do Céu criou seres humanos de milho.
Esses seres foram colocados na Terra e eram capazes de compreender e ver tudo que os cercava.
Eram capazes de enxergar longe e ver coisas que estavam escondidas.
Estavam conectados a todo o cosmos e viviam em equilíbrio com o mundo natural.
Mas os deuses perceberam que haviam dado poderes demais aos humanos.
Então, sopraram uma névoa sobre seus olhos.
Com a visão limitada, os seres humanos de milho caminharam sobre a terra e se reproduziram.
Lentamente, eles se distanciaram do mundo natural.
Esqueceram-se de como louvar os deuses e respeitar a Natureza.
O ciclo do tempo, a era dos seres de milho está chegando ao fim.
Haverá uma nova era para os seres humanos na Terra?
“Todas as condições meteorológicas estão levando a radioatividade para o mar, sem implicações para o Japão ou outros países próximos” – Maryam Golnaraghi, coordenadora do programa de redução de riscos em desastres nucleares.
A antiga profecia maia, que abre este texto e também o documentário 2012 Tempo de Mudança (que o Plantando Consciência trouxe para São Paulo no final do ano passado e que deve entrar em circuito nacional este ano), se encaixa na tragédia japonesa como o sapatinho de cristal no pé de Cinderela. E cabe também como resposta à miopia implícita na frase de Maryam Golnaraghi1,que revela o quão alienado é o senso comum. Olhamos para tudo o que acontece sempre do ponto de vista antropocêntrico, como fossemos de fato o centro do mundo, alienados da grande “teia de aranha” que conecta tudo o que existe, inclusive cada um de nós.
Por isso, quando a natureza se torna este poder primitivo indomável, que já deveríamos ter subjulgado com o nosso inegável progresso científico-tecnológico, nós mergulhamos num poço de incompreensão e angústia. “Como?”, o homem civilizado se pergunta. E de seu ponto de vista dualista e estritamente materialista, que separa a natureza – esta força devastadora – de nós – a civilização -, o homem civilizado fica aliviado de saber que a radiação esteja sendo levada ao mar. Melhor lá com eles do que aqui entre nós.
Os jornais usam títulos como “Natureza em Fúria”, e em seus editoriais concluem derrotados que “por mais bem preparado que esteja um país e por mais bem treinada que esteja sua população, é limitada a capacidade humana para conter os efeitos das catástrofes naturais”2. Ou, “a situação do Japão, que pertence ao grupo das nações mais ricas e mais tecnologicamente avançadas do mundo, fornece um clássico exemplo de como os humanos ainda estão desamparados em face da fúria da natureza”3.
O que esta visão antropocêntrica materialista não quer ver é que o ser humano SEMPRE será desamparado em face da “fúria da natureza”, porque o ser humano PERTENCE à natureza. O ser humano não dominou a natureza e jamais o fará, porque no dia em que isto acontecer estaremos condenados a perecer com ela.
Pra entender o que está acontecendo, ou pra evitar consequências drásticas toda vez que a natureza manifestar sua força, não adianta construirmos computadores mais impressionantes, ou nos protegermos ainda mais. Este viés moderno que joga a civilização contra a natureza é uma ilusão que carregamos desde o início da Idade Moderna, como nos conta o filósofo e reformista Rudolf Steiner, que teria completado 150 anos em Fevereiro último.
A Idade Moderna, que teve início em meados do século XV com o Renascimento, é definida, segundo Steiner, a partir de quando “o economista começou a emergir na civilização moderna como o tipo representativo de governante”4, substituindo o clero, que havia substituído, por sua vez, os “iniciados” do Egito, Babilônia e Ásia antigos. Estes últimos, os povos ancestrais, “sabiam que seu corpo era constituído não apenas de ingredientes que existem aqui na Terra e que são incorporados nos reinos animal, vegetal e mineral. Ele sabia que as forças que ele via nas estrelas acima trabalhavam em sua existência como humano, ele se sentia um membro de todo o cosmos.”5
Steiner, sempre à frente de seu tempo, tinha uma observação perspicaz a nosso respeito. “O pensamento humano de hoje – o presente intelecto – vive num estrato da existência de onde não se é possível alcançar as realidades profundas. Alguém pode então provar alguma coisa estritamente, e também provar seu oposto. É possível hoje se provar o espiritualismo de um lado e o materialismo de outro. Pela racionalização intelectual ou científica de hoje, alguém pode provar qualquer coisa tão bem quanto pode provar seu oposto. E as pessoas podem brigar uns com os outros por pontos de vista igualmente bons, porque seu intelecto está numa camada superior da realidade e não consegue descer para as profundezas da existência.”6
Se estivéssemos todos capacitados a descer às profundezas da existência, entenderíamos a catástrofe japonesa não como uma fatalidade, mas como consequência.
A vida imita a arte: Em 1954, nove anos depois de Hiroshima e Nagasaki, Ishirō Honda expressa o trauma generalizado das bombas atômicas ao criar Gojira (depois renomeado no mercado americano para Godzilla), um filhote bastardo dos testes nucleares no Pacífico, que tem a dorsal brilhante, cospe fogo atômico e deixa pegadas radioativas.
O jornalista Clóvis Rossi conta em interessante artigo sobre as conexões “fáusticas” do incidente japonês (fazendo analogia entre o pacto com o demônio que fez o personagem do mito imortalizado por Goethe, e a nossa perigosa barganha para obter o poder do átomo em nossas mãos) que, mesmo após o pânico nuclear, “Michael Levy, pesquisador-sênior do Council para energia e meio-ambiente, dizia ser cedo demais para uma avaliação sobre a eventualidade do retrocesso do que antes se chamava de ‘renascença do nuclear’”7. Claro, há muito dinheiro em jogo na indústria da energia nuclear, assim como há na indústria dos transgênicos, dos pesticidas, da extração de petróleo, da especulação financeira, das armas, do tráfico de drogas etc etc. Pela lógica intrínseca do capitalismo, estes problemas jamais serão resolvidos, pois eles são o próprio alimento para a continuidade alucinada do sistema.
Em contraste com a ciência natural, que é baseada na análise experimental causal, Goethe – uma das maiores influências no pensamento de Steiner – procurava a unidade universal da natureza. No fenômeno original da natureza ou nos arquétipos dos mundos vegetal e animal, ele descobriu uma seqüência de manifestações de conteúdo espiritual para os quais o homem é capaz de dar expressão deliberada em seu próprio microcosmo.8
Steiner parte de Goethe para construir sua própria cosmogênese. Ele acreditava que o pensamento manifesto em idéias é na verdade a essência do universo. O físico quântico Amit Goswami, um século depois, reverbera as teorias de Stenier ao chamar isto de “causação descendente”, ou seja, em vez de pensar na matéria como base da existência, a física quântica parte da premissa que a base de tudo é a consciência. Voltando a Steiner, um esforço deliberado de cognição resultaria em constante progresso em direção à “fundação do mundo”.
Assim como nos primeiros escritores românticos, a crítica do criador da antroposofia para a modernidade busca a reconciliação entre ciência, religião e arte – uma nova mitologia cultural, se originando do aprimoramento do processo do pensamento até que ele se torne a experiência intuitiva do Conhecimento Original.9
À época do tsunami asiático de Dezembro de 2004, que atingiu áreas de reserva ecológica, a falta de corpos de animais após o início das buscas espantou as equipes de resgate. Desde então a idéia de que os animais teriam um “sexto sentido” que os teria mandado fugir em tempo começou a circular pela internet. A história está começando a circular de novo, e não vale dizer que é fruto de crendice em bobagens paranormais. Os animais, diferentes de nós, estão conectados de forma integral com a natureza, em completa simbiose com a inteligência oculta de Gaia. Eles sentem com aqueles sentidos primitivos que nós desligamos desde que nos tornamos civilizados.
Assim, desconectados, nós choramos a devastação provocada na humanidade pelas forças da natureza e, incapazes de perceber o pacto faustiano que fizemos com o “demônio atômico”, choramos também pelas atrocidades e fatalidades do passado, como Hiroshima e Nagasaki, Chernobyl. Nós choramos toda vez que vidas humanas são ceifadas. Mas quem chorou pelas 2053 explosões nucleares a título de “teste” detonadas por 7 nações sobre e sob o solo do nosso planeta entre 1945 e 1998 (1032 delas apenas pelos EUA)?
Vídeos do VodPod não estão mais disponíveis.
Veja este belíssimo mas assustador mapa temporal das explosões feito pelo artista japonês Isao Hashimoto
Desde 1963 explosões submarinas e atmosféricas foram banidas, então a grande maioria destas explosões foram subterrâneas. Estaria Gaia, nosso planeta mãe, revidando mais de meio século de agressões nucleares em seu tecido subcutâneo? Chamando nossa atenção para o nosso próprio histrionismo? O que o seu corpo faria se você constantemente o cutucasse com uma brasa de cigarro, machucasse sua pele com micro cargas atômicas localizadas por anos? Alguma doença cutânea, matando milhares de células localizadas? Câncer de pele?
As analogias não são meras metáforas. É tarde pra continuarmos nos iludindo. O micro, o macro, tudo funciona como um padrão. A forma espiralada do DNA se repete nas galáxias, tudo segue uma lógica inteligente. Os resultados de nossas ações são inevitáveis nesta realidade entrelaçada, e enquanto nossas ações forem destrutivas, as consequências também o serão. Apenas colhemos o que plantamos. Nós podíamos plantar consciência, mas plantamos energia atômica no solo por mais de meio século, e agora, sem querer desmerecer os esforços humanitários em prática, não devíamos estar surpresos quando percebemos que chegou a hora da colheita.
2 O Estado de São Paulo, editorial da edição de 16/03/2011
3, 7 Clóvis Rossi (Janela para o Mundo), O Japão, Fausto e o átomo, 14/03/2011
4, 5, 6 The Ahrimanic Deception, Lecture by Rudolf Steiner (Zurich, October 27, 1919).
8, 9 Heiner Ullrich, Rudolf Steiner (1861-1925), originally published in Prospects: the quarterly review of comparative education (Paris, UNESCO: International Bureau of Education), vol.XXIV, no. 3/4, 1994, p. 555-572.