Meus últimos dez dias passei sem energia elétrica, sem TV, sem internet ou telefone celular. Meu desejo urbano mais profundo se materializou numa latinha de coca-cola. Ou duas, ao longo dos dez dias. Passei a “rapa no tacho” da minha conta bancária e fui fugir um pouco do ser que construí para se encontrar comigo mesmo. Aquela conexão essencial que só se consegue quando estamos entre os iguais, e dormindo sob um céu estrelado. No dia a dia, com tantas distrações, é bem fácil esquecermos do essencial.
Pesquei pra caramba, estava num paraíso da natureza, encontro das águas salgadas e doces, areias e pedras, mata virgem para todos os lados e um céu estrelado sem igual. Tínhamos levado comida suficiente, e um desejo de passarmos um carnaval “light”, mas não careta. Com a intenção de deixar uma pequena pegada ecológica, uso racional dos recursos, focando na felicidade e integração com a natureza. E assim se fez. Exceto, talvez, pela “sede” de pesca que eu tava. Explico, faz pouco tempo iniciei em um esporte altamente desafiador e recompensante, mas que só pode ser praticado em lugares muito especiais. A pesca submarina só se faz em condições raras: tem que ter água clara, e claro, tem que ter peixe. Unindo o útil ao agradável, eu era responsável por prover a “proteína” da alimentação. Naquele paraíso isolado, fiquei igualzinho a criança com brinquedo novo, não conseguia pensar em mais nada…
Até que um belo dia, tendo expandido a viagem em 3 dias não planejados, me dei conta que o alimento estava literalmente acabando. Enquanto haviam outros turistas na vila, beleza, o cardápio do Bar do Seu Chico era farto: café da manhã, misto quente, pastel, PF, porção de lula batata frita e o escambau. Da noite pro dia, foi tudo apagado e apenas se lia: pastel de queijo.
A não, até ontem eu tinha TUDO, e agora só posso comer pastel de queijo? Se não fosse isso, seria batata com arroz. “Que bosta que é viver a privação”, pensei comigo. (Que privação mais urbanóide, pensei depois). Unindo o útil ao agradável, sem nem pestanejar muito, arregacei a manga e fui pescar. Acontece que também no mar, a fartura dos primeiros dias havia minguado. Entrou uma corrente fria danada, que espantou a maioria dos peixes “bons”. E agora? Muito esforço e pouco retorno, mas atuando bravamente, não deixei ninguém passando fome, ou vivendo só à base de pastel de queijo.
Conversando com seu Chico, o dono do bar, o chefe da vila, o mais antigo pescador da região, achamos um ponto em comum para a prosa de pescador: “não tem mais tanto peixe como antigamente”. O que senti na pele, em uma semana, seu Chico sente ao longo dos anos. Sua pesca tradicional “de cerco” está com os dias contados. Em grande parte por conta dos barcos que pegam o peixe muito antes dele adentrar a baía, não dando tempo para que os grandes cardumes encontrem as redes que estão preparadas esperando.
E aí, cansado de esperar pelo peixe que não vem, seu Chico agora quer traineira… Isso é somente o simbolismo de algo muito ruim que está acontecendo mundo afora. Como os grandes peixes não estão mais abundantes, e dificilmente um grande cardume vai aparecer “de bandeja” em uma rede de cerco, os pescadores tradicionais se vem obrigado a literalmente perseguir os cardumes com uma rede fininha chamada de “traineira”, de maneira que todo o peixe seja capturado e não tenha como fugir.
E a coisa vai ficar pior, seu Chico. O Brasil é um dos países onde a pesca ainda não se desenvolveu “de verdade” considerando o número de barcos pesqueiros (VIDEO http://www.youtube.com/watch?v=C3tCuheNOTA&feature=player_embedded), a tendência da pesca industrial, em oposição à pesca tradicional, está literalmente drenando os estoques mundiais de pescado. Este tipo de pesca é muito mais produtiva, fala-se em barcos (nvaios) capazes de carregar até 150 toneladas de peixes… mas também geram um desperdício infinitamente maior do que a pesca artesanal. O pescado, que naturalmente já tem uma grande perda, de cerca de 30% de partes não comestíveis, é ainda um tipo de carne muito sensível, que não resiste ao aumento de temperatura, e que deixa de ser saudável e saborosa em poucos dias. Ou seja, perde-se muito até que o filezinho de salmão para sashimi chegue ao seu prato.
Já que os grandes peixes comerciais começam a rarear, o foco agora é a sardinha. O problema é que a sardinha é um nó importantíssimo na cadeira alimentar dos 7 mares. Os cardumes de sardinha alimentam diversos outros cardumes de peixes. Se está faltando peixe, é porque já se pescou demais. Se aparentemente está sobrando sardinha, é por que não tem o predador, mas se pescarmos também demais a sardinha, para onde vamos?
Como consequência, está cada vez mais difícil de se tornar um pescador legalmente cadastrado na Europa. Os custos e as restrições vão às alturas, de maneiras que só as grandes corporações podem se dedicar à esta atividade. Como exemplo, o investimento para se ter um sonar para localização dos cardumes, equipamento eletrônico que se tornou praticamente indispensável seguindo a prática atual, pode facilmente passar dos R$200 mil reais.
Fonte: http://www.guardian.co.uk/news/datablog/2011/jun/03/fish-stocks-information-beautiful
Os números não mentem, nos últimos 25 anos a quantidade de sardinhas pescadas no Brasil caiu para cerca de 20% do que era na farta década de 70. Cerca de 85% das áreas pescáveis dos oceanos estão classificadas como totalmente exploradas, superexploradas ou até mesmo esgotadas. Isto é um fato. Cruze esta informação com o fato de que o Banco Mundial anuncia que vai “salvar os oceanos” com R$300 milhões de dólares , falando-se de um mercado pesqueiro de dezenas de bilhões de dólares. Minha leitura desta notícia é dúbia. Claro que é positivo que se tenha mais dinheiro disponível para preservação da natureza, afinal, as atividades dependem de recursos, pouco se faz sem dinheiro. Mas acontece que precisamos é de atitudes concretas, diminuição de captura, restrição de espécies, planejamentos dos estoques marinhos, e muita reza, e crença na força regenerativa da mãe natureza. O impacto vai ser necessariamente menos peixe na mesa, e uma mesa menos farta. Em todos os aspectos, é hora de fazermos algum sacrifício para um amanhã melhor.
“Quando a última árvore for cortada, quando o último rio for poluído, quando o último peixe for pescado, aí sim eles verão que dinheiro não se come…”
Para saber mais: Quais peixes deve-se pescar (e consumir?)
http://www.informationisbeautiful.net/2011/which-fish-are-okay-to-eat/