Foi uma semana daquelas.
Sentindo-se encurralado nos negócios e alheio ao que acontece no seu próprio lar, suas últimas noites foram mal dormidas, repletas de insegurança e preocupação. Então, em meio a um sonho estranho, um misto de delírio com pesadelo, que juntava – sobre a cobertura de um prédio – uma festa com um julgamento, uma celebração bizarra de polaridades, onde ex-funcionários seus curtiam ao mesmo tempo em que o botavam no pau, o pai é desperto por duas mãozinhas que o chacoalham fragilmente no escuro das 2 horas da manhã.
– Papai…
– …
– Papaai…
– Hmmm… Oi… filho… hmm que aconteceu?, ele resmunga acendendo o abajur e cerrando os olhos, agredidos pela súbita luminosidade no quarto.
Sabendo que irá esquecer deste sonho estranho em poucos instantes, o pai tenta repassá-lo rapidamente na cabeça, pra tentar tirar algum significado dele. Mas as imagens se misturam com a súbita consciência de que seu filho está ali precisando dele, seu filho que anda tão desamparado, para quem ele não tem conseguido preencher seu papel de protetor, tão ocupado que anda com seus próprios interesses.
– Papai, tá doendo… o menino fala com um biquinho de cortar o coração, interrompendo seus pensamentos.
– Hã? Doendo… o que aconteceu?
– Tá doendo aqui – o garoto levanta a camisa do pijama e aponta, com voz trêmula, a um instante de cair aos prantos, para uma inofensiva marca de nascença no lado esquerdo da barriga, que sempre esteve lá.
– Eu não consigo dormir… porque tá doendo aqui – a frase soa quase como um lamento musical em sua delicadeza infantil.
O pai se ergue e, já ciente do que está acontecendo, senta-se na beirada da cama e segura seu filho com as duas mãos ao redor dos ombros.
– Hmmm… tá dodói meu amor?
– Tá… – o menino começa a choramingar
– O que aconteceu? – Pergunta o pai, como se esperasse inconscientemente que o garoto respondesse aquilo que ele, em sua maturidade, já sabe.
– Um bicho me picou.
– Hã? Bicho? Picou?! – por um momento ele fica alerta com a notícia, mas, olhando para a barriga do menino, logo percebe que é um recurso infantil, a única maneira que o garoto tem de expressar o medo que seu pesadelo despertou.
– Tá doendo!
Ainda atormentado por um obscuro sentimento de culpa que foi desenterrado pelo seu próprio sonho, e ciente dos acontecimentos recentes, ele, como bom homem de negócios, enxerga uma possibilidade de ouro para reconsquistar a confiança do garoto. A idéia passa como um raio, quase insconscientemente, mas a motivação fica. O pai então se inclina para dar um beijo na barriga do filho, que se afasta, empurrando-o com os braços e virando a cabeça pro lado.
–Pára !
– Calma filho, é só o papai, não é o monstro que está aqui agora.
E, enquanto faz um carinho, diz:
– Já vai sarar, papai está cuidando do seu machucado.
Então ele se levanta e completa,
– Eu vou pegar este bicho que te picou filho, e vou matar ele pra ele nunca mais machucar você!
O pai calça os chinelos e vai até o quarto do garoto, que permanece onde estava, choramingando ao lado da mãe, que sem se levantar o abraça na cama. O menino ouve então uns barulhos lá no outro quarto, e então escuta a voz abafada do seu pai dizer enfaticamente “Arrá! Te peguei! Seu monstro, você nunca mais vai machucar o meu filho! Toma aqui!”. O menino escuta então o ruído de se abrir e fechar a janela do quarto.
– Pronto!
O pai volta ao quarto do casal e diz pro garoto, cheio de firmeza “Prontinho filhão! Achei o bicho que te picou! Ele era feio e mau, mas era um covarde. Onde já se viu atacar meninos pequenos! Mas eu sou maior que ele.
O garoto fica olhando o pai ali de pé, entoando seu pronunciamento com a firmeza de uma rocha, e sente um calorzinho acolhedor subir pela sua espinha, um sentimento de justiça e de segurança, de estar protegido por um herói.
– Ele tava se escondendo debaixo da sua cama, veja só! Mas eu peguei o bastardo! Esse monstro já era! Você nunca mais vai ver ele andando por esta casa.
O menino sorri, embora ainda fragilizado pelo efeito do pesadelo, e é acalentado pelos pais por uns instantes, em silêncio.
Então ele se afasta um pouco do pai, dá um suspiro, olha pra cima, bem no seu rosto, e com a face ainda pintada pelas lágrimas diz:
– Papai, você não matou monstro nenhum!
– O quê meu filho?!!
– É mentira!
– Quê isso filhão! Papai pegou ele, acabou com ele, você ouviu tudo!
– E cadê ele?
– Eu o joguei lá fora, pra bem longe filho!
– Eu não vi nada! Por quê você não me mostrou que pegou ele então?
– Filho, ele era muito feio, tava morto! Se eu mostrasse pra você, você ia ficar assustado. Ia ter até pesadelo depois! Papai nao faz essas coisas!
– É mentira!
– Meu querido, por quê o papai mentiria pra você?
– Você mentiu pra mim que o coelinho da Páscoa e o Papai Noel existiam! Você mentiu pra mim que ia na minha apresentação! E você disse que nunca mais ia deixar o João Pedro me bater na escola. Você prometeu que nunca mais ia brigar comigo!
O pai olha para o filho com seriedade e sente um cansaço. Por um momento ele fica com vontade de pedir desculpas, mas logo engole esta vontade, lembra-se que está com sono e repete pra si mesmo que este moleque precisa de um psicólogo. Ou de um remédio. Ou ambos. Então ele simplesmente diz:
– O papai matou o bicho que te machucou filho. Se você não acredita no papai é porque o monstro e os amigos dele ficaram sussurrando idéias erradas no seu ouvido que confundiram a sua cabeça. Agora vamos dormir senão eu vou te botar de castigo.